sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Reflexoes 16 /Falando para as paredes


REFLEXÕES 16 / FALANDO PARA AS PAREDES

 Atenção: Aquilo que se fala, não é mesmo que é entendido.

As vezes tenho essa estranha sensação quando me deparo com alguns interlocutores, que não entendem aquilo que estou falando. Não sei se é por distração, desinteresse ou deficiência cognitiva.

Tento ser o mais claro, simples e didático possível ao fazer um pedido, expor uma ideia, um projeto ou manifestar um sentimento; mesmo assim nem sempre sou compreendido, como se fosse necessário desenhar ou explicar melhor.

Claro que a comunicação efetiva depende da capacidade do interlocutor de entender a mensagem que será transmitida. Assim se está falando com uma criança é uma coisa; num auditório técnico, numa assembleia, numa sala de aula são outros quinhentos. Para cada um particular deve se usar uma linguagem que seja acessível a todos, diferentemente de querer a agradar a todos.

Claro que como portador de um vocabulário mais amplo, as vezes me escapa naturalmente uma palavra mais difícil e erudita ou eventualmente técnica obrigatória. Mas para ser mais bem compreendido, não costumo falar por metáforas, símbolos ou ironias, para não complicar, mas procurando exemplos e analogias que podem ilustrar melhor a ideia ou situação.

Vejamos algumas situações curiosas onde isso ocorre, frequentemente.

1. - Falando com um prefeito para explicar alguns projetos urbanos elaborados para seu município, expliquei separadamente as soluções apresentadas para alguns problemas ligados a urbanização de praças, praias e outros de equipamentos como bibliotecas, creches etc. Todos eles acompanhados de desenhos e as justificativas necessárias.

O prefeito ouviu, com aquela cara de paisagem, e disse que o problema maior do município era de asfalto, acrescentando que era isso que ele ia fazer. Não discordei, mas percebi que o diálogo já começava atravessado. Você fala A e ele está ligado em B. Parece que falamos em idiomas diferentes.

Mesmo assim ponderei que esse investimento iria piorar a questão das enchentes na cidade, pois ia aumentar sua impermeabilidade. Não se deu por vencido. Disse que já tinha financiamento e era isso que ia fazer.

Resultado: começou a asfaltar, acabou a verba, deixou o serviço inacabado, piorando os aspectos que queria melhorar e os outros decorrentes.

Quanto as minhas propostas, ficou de analisar. Isso nunca aconteceu.
Até as paredes do gabinete, ficaram decepcionadas.

2.   - Numa situação de sala de aula as dúvidas sempre são benvindas; mas uma vez esclarecidas, deveriam ser sanadas; mas não é bem assim que acontece. Constata-se na prova que não foram bem entendidas, pois as notas baixas comprovam a não compreensão.

Ou em outras questões mais complexas, como analisar um projeto que apresenta falhas básicas, orientando para as suas correções, percebe-se na avaliação final que eles não foram corrigidos, por falta de entendimento.Aqui as paredes estão carecas de presenciar esses fatos todo ano letivo.

3.  - Num relacionamento amoroso o diálogo é sempre mais difícil para expressar os sentimentos gerados desse convívio; as palavras nem sempre são o melhor veículo para essa manifestação. A banalização das palavras como amor, querida não são suficientes. Gestos e atitudes precisam complementar o diálogo, para a necessária compreensão e harmonia.
E pior é quando a conversa precisa ser direta e racional, para resolver um problema simples, mas que fica ofuscada pelo envolvimento do lado sentimental ou outro interesse oculto envolvidos. Raramente há espaço para a objetividade. Quer ver:

Onde você quer sentar-se? Não, ali não. É melhor do outro lado.
O que você vai comer? Quero lasanha. Mas não viemos numa churrascaria?
Vamos por aqui? Não, quero ir para o outro lado.
Quanto tempo ainda tenho que esperar? Quando terminar de me arrumar te aviso. Depois de horas: Estou bem?
Pegou as chaves? Não está na bolsa. Acho que perdi.

Aqui as paredes são testemunhas das brigas e também de outros prazeres noturnos.

4.   -  Falando com surdos, velhos ou novos. É aquele sufoco E preciso repetir, gritar e gesticular para ser entendido.
- Você quer ir para a Barra Funda?
- Aquela mulher é imunda?
- Não foi isso que quis dizer.
- O que isso tem a ver?

E por aí vai esse autêntico diálogo de surdos, que nem as paredes entendem.

5.   -  Num bar falando sobre futebol imagina como é a conversa entre vários torcedores de times diferentes, bebendo cerveja e comendo amendoim ou torresmo. Claro que ninguém se entende. Mas o objetivo não é este. E desopilar, para chegar mais leve em casa e não brigar com a mulher. Cada um fala mais alto que outro, como se isso fosse necessário para convencer o outro.
- O Messi é o melhor de todos. -Para mim é o Cristiano Ronaldo. -Como a seleção de 70 não tem igual. -O Neymar é um pipoqueiro. -Flamengo é o maior. - Aquele juiz é um ladrão. Aquela bandeirinha é gostosa.
E por aí vai, até pedirem a saideira.

Como se vê são monólogos, dirigidos para as paredes, como se fora  um ente etéreo e confidente.

6.   - Na mesa familiar italiana no almoço de domingo
 Família reunida: o nono, a nona na cozinha, os filhos, noras, genros, netos e agregados. A comida é o que mais importa. Deve ser farta. Tem sempre um antepasto, uma massa, carne, maionese, salada, muito pão, pudim ou sorvete de sobremesa, vinho, cerveja e refrigerantes.

O mais velho fica na cabeceira, podendo ser o nono ou o pai; as crianças ficam numa mesa à parte e o cachorro esperando a sobra.

Todos falam com as mãos, juntos, bem alto e de boca cheia, recheados de palavrões. O assunto não tem nenhuma importância.

- O que comeram ontem; - O que vão comer a noite. - A melhor pizzaria é a Bela Napoli. - O parente que está doente. -Os corneteiros não deixam o Parmera em paz. - Saudade da Sicília, Calábria. - Aquele não passa deste ano. -Quem não está presente é um defichenti, malcalsone, farabuto.

No caso, o quadro ou a foto na parede é que testemunha tudo, em silencio, as vezes rindo.

7.    - Numa Roda de amigos sobre política
Quando isso ainda era possível, pois agora a radicalização tomou conta

- Essa reforma de previdência veio para tirar os direitos dos trabalhadores.
- Mas ela vai acertar as contas do governo.
- Querem enfiar a capitalização, modelo Chile, goela abaixo da nação.
- O STF é um covil de ladrões. Tudo vendido
- PT nunca mais. Bolsonaro é o mito.

Como se vê nesse caso não há diálogo, mas sim posições antagônicas, radicais, arraigadas, sem nenhum argumento para convencer a parte contrária, considerada inimiga, que precisa ser abatida.
Não há objetivos de se estabelecer consensos para resolver impasses e avançar em soluções democráticas.

Cada um fala para si, como para as paredes, que sentem vergonha.

8.   -  Conversa com os netos

Aí o feitiço vira contra o feiticeiro. É você que não entende o que eles falam, pois eles se expressam noutro idioma, que é antropofágico com as palavras, tem gíria própria, além de ser virtual.
Gíria jovem sempre houve. O problema agora é que você é a vítima.

- E ae vô. Q q rola vô. Tô na balada, mano. -Mtt saúde pra vc. -Pra vc tbm vô. -E aí bebê, vem de Zap? -  Ele é meu crush (No meu tempo crush era um refri amarelo) - Eu sou top.- A festa tá bombando. - Não flopou.

Será que eles voltam a falar português, mais tarde?

Conclusão geral:  Às vezes tenho dúvidas daquele ditado que diz que conversando é que se entende.

Edison Eloy de Souza / janeiro 2020

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